Momento de comemorar os bons ventos na América do Sul
Luiz Gustavo Rabelo Carneiro*
Em um momento de pressão quase insuportável na América do Sul, devastada pela insensatez de governos de direita e extrema-direita, a vitória de Alberto e Cristina na nossa vizinha Argentina é um alentaço. O país de Perón tem inegável influência em outras nações sul-americanas. E o valor simbólico do retorno da esquerda ao poder renova a esperança de que o povo, finalmente, começou a compreender as verdadeiras consequências das mazelas trazidas por governos extremistas de corte neoliberal.
Particularmente, vivi diretamente o processo eleitoral argentino de 2015, ano em que Maurício Macri venceu o pleito, interrompendo quase treze anos de governos progressistas de esquerda. Fui testemunha da tristeza de meus amigos peronistas e kirchneristas, arrasados com o fato de que o povo argentino não compreendera a importância e a profundidade das mudanças e da guinada rumo ao social implementadas pelo casal Néstor e Cristina.
Me recordo, em especial, da expressão de dor e desespero de um amigo de trabalho, peronista convicto, na véspera da posse de Macri. Voltávamos, eu, ele e minha esposa, de um jantar em Palermo, um conhecido bairro portenho. No caminho, passamos pela casa da sogra do então presidente eleito, num edifício chique com a fachada voltada para a conhecida Avenida Del Libertador. Uma multidão aplaudia e se regozijava sobre a avenida, ao pé da sacada do apartamento, de onde o agora futuro ex-presidente, sua esposa e outros membros da família acenavam ao povo entre sorriso de dentes.
Comovido com a expressão de incredulidade e tristeza do meu amigo, me recordo que, com a intenção de amenizar seu terrível estado de espírito, comentei que talvez fosse mesmo necessário o povo argentino passar por isso para, em momento posterior, reconhecer o valor de um verdadeiro governo popular.
Hoje, ao observar de longe e com felicidade, a multidão argentina aplaudir Alberto e Cristina, percebo que acertei o prognóstico. Os eleitores argentinos entenderam, a duras penas, o que é ser governado por uma entourage sem preparo, cujo objetivo sempre foi, desde o início, assegurar privilégios e encher ainda mais o bolso das elites e de seus comensais.
O júbilo de agora, reforçado pela vitória de Evo na Bolívia, no provável sucesso eleitoral do Frente Amplio no Uruguai, e no despertar do povo chileno, não pode, no entanto, cegar as forças progressistas da América do Sul.
O resultado na Argentina é prova irrefutável disso. Esperava-se uma vitória por um número muito maior de votos. Não foi o que ocorreu. No Uruguai haverá segundo turno. E o Chile ainda é governado por um grupo político de direita, o que deve ser respeitado em nome da mais-do-que-nunca sagrada soberania popular.
O que os resultados, finais ou preliminares, das eleições sul-americanas mostram é que, em geral, temos um continente dividido. As forças de esquerda e centro-esquerda precisam agora mostrar que são capazes de implementar em seus países um plano de governo de orientação verdadeiramente popular, com a retomada e melhoria de políticas eficientes, capazes de melhorar a situação da economia e, sobretudo, reduzir drasticamente a terrível desigualdade social que há séculos desmantela a vida de suas populações empobrecidas.
Tudo isso deverá ser conduzido em paralelo com ações e iniciativas que mostrem concretamente que esses novos governos estão de fato comprometidos com o combate à corrupção. Para conquistar boa parte da imensa parcela do eleitorado que ainda não votou nessas forças, elas deverão ajustar sua retórica às suas ações. A bem da verdade, é preciso reconhecer que derrotas anteriores estão diretamente relacionadas à corrupção e à certa condescendência e aliança com velhas elites políticas.
Sim. Se o progressismo quer mesmo se manter no poder durante o tempo necessário para mudar definitivamente as feições do continente sul-americano, tirando-o do atraso secular e melhorando a vida de sua população pobre, além de acertar na condução da economia e na implementação de políticas públicas inclusivas e eficientes, precisa lidar de forma completamente distinta com a corrupção e com os corruptos. Ou então, infelizmente, teremos que assistir no futuro novas vitórias de gente como Macri e Bolsonaro.
Feito o alerta, o momento é de comemorar a vitória democrática dos povos da Argentina, Bolívia e, ao que tudo indica, do Uruguai. De minha parte, sigo torcendo para que os bons ventos do altiplano boliviano e dos pampas uruguaios, e os bons ares portenhos, de algum modo, cheguem à parte leste do continente, se espalhando pelo território que se estende do Oiapoque ao Chuí.
*Jornalista e bacharel em Direito. Foi Assessor Especial do Ministério da Defesa do Brasil e delegado brasileiro junto ao Centro de Estudos Estratégicos do Conselho de Defesa Sul-Americano da Unasul, em Buenos Aires, Argentina. Trabalhou em alguns dos principais jornais do país e chefiou a Assessoria de Imprensa da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Em 2018, coordenou o Centro de Divulgação das Eleições do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
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