A Revolução Brasileira em tempos de extrema direita
por: Jones Manoel
A Revolução Brasileira é a coluna quinzenal e exclusiva para o site Socialismo Criativo assinada por Jones Manoel. Historiador, professor, educador popular, youtuber e podcaster, o colunista abordará os caminhos revolucionários a partir do ponto de vista da juventude marxista brasileira.
Boa leitura!
A Revolução Brasileira em tempos de extrema direita
A conjuntura brasileira passou por uma reviravolta mais ou menos radical a partir do final de 2014. Dilma Rousseff, reeleita depois de prometer que não iria tirar direitos "nem que a vaca tussa?, escolhe Joaquim Levy, um banqueiro do Bradesco, para o Ministério da Fazenda. No conjunto da obra, o governo Dilma forma um ministério conservador e opera um ajuste fiscal antipopular que, combinado com os efeitos da Lava-Jato, dobra a taxa de desemprego em dez meses.
A sequência é conhecida: mesmo tentando pela enésima vez afagar a burguesia brasileira, Dilma sofre o golpe; é formado o governo de Michel Temer, que acelera e aprofunda o ajuste fiscal antipopular e as contrarreformas e depois, em 2018, a eleição do governo liberal-fascista liderado por Jair Bolsonaro. No plano cultural e social, é sentido por todo lado um bafo reacionário e ultraconservador e cresce em ritmo constante a organização de grupelhos neofascistas ? a organização desses grupelhos, muitos deles armados, se combina com o crescimento da influência do bolsonarismo nos quartéis da Polícia Militar, bombeiros e Forças Armadas.
Frente ampla sem debater tipo de democracia
Nesse contexto político, como é clássico na história das esquerdas, duas grandes tendências de reação se colocam no cenário. A primeira e majoritária defende uma frente ampla, amplíssima, com todos os setores da sociedade ? inclusive forças e expressões políticas da burguesia ? na ideia de barrar o "mal maior?. A ideia de frente amplíssima, via de regra, baseia-se numa abstração: defesa da democracia ou da liberdade, sem debater que tipo de democracia ou liberdade nem para quem.
Na quadra política brasileira, a materialização dessa linha política significa falar em abstrato na defesa da democracia sem debater o encarceramento em massa, a violência policial nas favelas, o genocídio da população negra, a democratização da mídia, a revogação de todas as contrarreformas impostas desde 2016 (como o teto de gastos), reforma agrária, reestatização de tudo que foi privatizado, mudanças radicais no Judiciário para impedir o surgimento de aberrações como a Lava-Jato, o enfrentamento ao Partido Fardado (base fundamental de sustentação do bolsonarismo) e toda uma série de lutas e pautas centrais e pendentes na política brasileira.
Em suma, a linha da frente amplíssima é, basicamente, retirar Jair Bolsonaro da presidência esperando ele "sangrar? até 2022 e fazer uma gestão "humanizada? do novo regime institucional de acumulação de capital montado de 2016 até agora. Se compreendermos o bolsonarismo como, dentre outras coisas, a forma tática de continuidade da ofensiva burguesa iniciada no final do segundo governo Dilma, essa linha de ação não é um enfrentamento ao projeto liberal-fascista em curso, mas a busca por uma "pausa?, uma tentativa de repactuação e gestão menos explosiva da dominação de classe no Brasil.
Combate à extrema direita impõe mudanças táticas
A segunda linha de ação é compreender que mesmo que a ofensiva da burguesia, materializada na ascensão da extrema direita, imponha mudanças de tática e composições mais amplas de ação em defesa de direitos democráticos, a estratégia política continua sendo socialista e centrada na independência política, organizativa, cultural e teórica das classes trabalhadoras na perspectiva de conquistar o poder ? isto é, a linha da Revolução Brasileira.
É possível, em momentos circunstanciais, unidade de ação com forças burguesas que se colocam no campo democrático (da democracia burguesa), mas nunca, sob hipótese alguma, abandonar o programa socialista, revolucionário, numa espécie de pausa política para em outra situação, "menos perigosa?, retomá-lo. Um exemplo prático: é ótima a ampla defesa da vacina para a Covid-19 feita por vários partidos liberais, monopólios de mídia, gerentes do sistema burguês e até figuras da burguesia. Na prática, o campo revolucionário, marchando e golpeando separado, atua em unidade de ação com esses setores da classe dominante em defesa da vacina.
As mudanças de mediação, de tática e até readequação de palavras de ordem se fazem mantendo a estratégia revolucionária. Isso não significa, que fique claro, nenhum tipo de esquerdismo ou defesa do "quanto pior melhor?, mas a fidelidade a um programa político que é defendido não porque o governo de momento é horrível, mas porque o capitalismo precisa ser superado.
Entre essas duas grandes formas de reação, temos gradações, é claro. Recentemente, por exemplo, o líder do MTST e membro do PSOL, Guilherme Boulos, em entrevista ao podcast Revolushow, defendeu uma linha política que poderia ser compreendida como intermediária entre esses dois polos. Para Boulos não é possível unidade eleitoral com a direita tradicional, sendo necessário um programa de esquerda comprometido com, dentre outras coisas, a revogação das contrarreformas (como o teto de gastos), mas é possível unidade de ação com a direita contra as "medidas autoritárias? de Bolsonaro ? Boulos iguala conquista do poder e ganhar a eleição no Estado burguês, o que, evidentemente, o afasta de uma concepção revolucionária do socialismo.
Em defesa da Revolução Brasileira
Apresentadas essas linhas gerais, podemos dizer o motivo de defendermos a bandeira da Revolução Brasileira mesmo frente a um governo de extrema direita. Três são as razões centrais: uma de caráter mais geral da dinâmica do capitalismo, uma segunda mais presa à realidade brasileira e à ascensão da extrema direita, e uma terceira sobre os desafios mais imediatos que devemos enfrentar. Vejamos.
O capitalismo vive de ciclos econômicos e oscilações entre momentos expansivos e crises. A crise é parte constitutiva da dinâmica capitalista e não uma anomalia provocada por uma gestão equivocada da política econômica. A política econômica interfere no ritmo e na profundidade da crise, mas não pode impedir sua existência. Assim como existem ciclos econômicos, também podemos falar de ciclos políticos, com níveis maiores ou menores de direitos democráticos, terrorismo de Estado e fechamento de regime.
Esses ciclos políticos se relacionam com o contexto nacional da luta de classes, a dinâmica geopolítica do imperialismo e os próprios ciclos econômicos. Uma olhada rápida para Europa Ocidental, por exemplo, vai mostrar um ciclo de ampliação da democracia política e dos direitos econômicos e sociais do final do séc. XIX até começo do séc. XX; em seguida, um ciclo fascista que vai até a Segunda Guerra Mundial; posteriormente, a montagem do Estado de bem-estar social e um momento de grande ampliação de direitos sociais e políticas públicas; em sequência a onda neoliberal com o desmonte do Welfare State e o fechamento de vários espaços democráticos e por fim, e mais recentemente, um novo ciclo neofascista chamado pelos monopólios de mídia de "populismo de direita?.
Capitalismo pressupõe crise econômica
O exemplo europeu pode ser, com as devidas particularidades, expandido para todas as regiões do mundo. Assim como o capitalismo pressupõe a crise econômica, ele tem como parte de sua dinâmica orgânica de funcionamento a crise política, o fechamento de espaços democráticos, a intensificação do terrorismo de Estado e a perseguição aos movimentos da classe trabalhadora. Deixar de lado o programa revolucionário no momento de crise política e ofensiva burguesa faz tanto sentido quanto abandonar as lutas populares e o sindicalismo no momento de crise econômica.
Quem considera normal "pausar? a política pelo socialismo em momentos como esse que vivemos, na realidade, não busca o socialismo, mas um Welfare State na periferia do sistema, e seu problema não é com o capitalismo e a dominação burguesa, mas com um governo que não tem nenhuma política redistributiva e não estabelece "diálogo? com os movimentos sociais.
A segunda questão diz respeito à dialética da ofensiva burguesa. O campo reformista gosta de mostrar o golpe de 2016, o governo Temer e a eleição de 2018 como um raio em céu azul, uma ruptura completa com a Nova República e a "normalidade democrática?. É como se a crise não fosse uma explosão de contradições que vinham sendo gestadas no período anterior, o tempo da "normalidade?; pensam a crise política como uma doença que do nada, sem motivo e sem causa, contamina um corpo totalmente sadio.
Narrativa isenta responsabilidades
É uma narrativa cômoda para se isentar de responsabilidade pela situação política do país. Nesse tipo de "lógica?, os militares um belo dia e por alguma razão subjetiva (são golpistas, só pensam em dinheiro etc.) decidiram reocupar o primeiro plano da política, e a estúpida participação do Brasil na missão neocolonial no Haiti e políticas de "segurança? como a UPP e a ocupação no Complexo do Alemão não têm absolutamente nada a ver com isso ? evidentemente, deve ser só uma coincidência o fato do primeiro comandante brasileiro na MINUSTAH, general Augusto Heleno, ser peça central no bolsonarismo; acaso também que vários entre os seis mil membros militares do Governo Federal tenham estado no Haiti; eventualidade que 60% dos soldados que ocuparam o Complexo do Alemão tenham passado pelo Haiti e os quartéis sejam hoje uma das principais bases de apoio do bolsonarismo.
A aliança dos governos Lula e Dilma com a Rede Record e a Igreja Universal como parte da tática geral de cooptar os grupos fundamentalistas a partir de apoio oficial e outras benesses (como permitir a violação da lei, comprando livremente tempo na TV aberta), também não deve ter nada a ver com a força desses setores na conjuntura.
Aliado a isso, o abandono de qualquer projeto de reforma agrária, o fortalecimento como nunca do latifúndio, o endeusamento do agronegócio como "herói nacional? e o aprofundamento da dinâmica primário-exportadora da economia também não deve ter relação direta com a força da bancada ruralista e a sustentação que ela oferece ao bolsonarismo.
Ironias a parte, com poucas exceções, como o DEM (antigo PFL), o complexo de interesses que deu vida ao governo Temer e depois formou o Bolsonarismo é em grande medida de ex-aliados do PT e parceiros de governo (como PCdoB, PDT, PSB etc.).
É a conciliação de classes do período da "normalidade? que abre a possibilidade histórica do surgimento da ofensiva reacionária da burguesia. Podemos falar sim de rupturas, com ruptura com continuidades, fortalecimento de tendências que já vinham sendo gestadas há tempos.
Radicalidade para a Revolução
Por último, é ingênuo, no melhor dos casos, achar que uma nova eleição em 2022 vai repactuar o sistema político e vamos voltar ao suposto Jardim do Éden que era a Nova República. Não existe motivo plausível para crer que a ofensiva burguesa desatada no final do governo Dilma II vai parar e que os atores políticos destacados na conjuntura, como os militares (o Partido Fardado), vão, num passe de mágica, voltar ao padrão de "normalidade? pré-2014.
Na "melhor? das situações para esse tipo de "lógica?, nos próximos 18 meses, o Congresso Nacional opera todas e cada uma das contrarreformas e privatizações na agenda da burguesia e o futuro governo de "pacto nacional? terá como missão fazer a gestão dessa terra arrasada e realizar a segunda festa da anistia ampla, geral e irrestrita, onde ninguém será punido pelos mais de 500 mil mortos na pandemia (até o momento da escrita desse texto).
O momento atual não exige moderação, mas sim radicalidade. A ofensiva da burguesia só será parada com uma ofensiva popular que consiga fazer da resistência uma ponte para ataques da classe trabalhadora. Ataques que devem visar não só enfrentar o novo regime de dominação e acumulação de capital montado de 2016 em diante, como também fazer dessas lutas o fio condutor para colocar o projeto da Revolução Brasileira no centro do debate político.
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