Várias iniciativas apoiam a preservação de línguas indígenas
por: Igor Tarcízio
No Brasil, existem populações indígenas que contam com milhares de falantes, como os Mundurukú (PA), os Makuxi (RR) e os Ticuna (AM). Apesar das tentativas do governo de Jair Bolsonaro de destruir os territórios dessas comunidades com a flexibilização de legislações ambientais, a diversidade linguística e cultural dos povos tradicionais têm recebido diversos apoios para ser conhecida, documentada e preservada.
Mais recentemente foi anunciado que dois idiomas indígenas amazônicos agora estão disponíveis para usuários de celulares Motorola. A empresa estadunidense adicionou as línguas Kaingang e Nheengatu entre as opções suportadas em qualquer dispositivo que tenha sido atualizado para a nova versão do sistema operacional Android. Com a iniciativa, ela se tornou a primeira fabricante de telefones celulares do mundo a dar suporte a idiomas indígenas falados na Amazônia.
Responsabilidade social
A implementação faz parte do conceito "Tecnologia mais inteligente para todos?, pregado pela companhia como um braço de responsabilidade social. Os idiomas indígenas se somam aos outros 80 que podem ser selecionados nos aparelhos Motorola.
"Antes da chegada dos portugueses ao Brasil, aproximadamente 1.215 línguas eram faladas no território. E, com o tempo, muitas dessas línguas deixaram de existir. Hoje, 500 anos depois, apenas cerca de 200 delas permanecem vivas. Em menos de um século, esse número poderá chegar a zero. Quando uma língua desaparece, morre também com ela a história, a cultura e a identidade daquela população. E um patrimônio cultural é extinto?, diz o texto do comunicado oficial da empresa.
A tradução foi desenvolvida em parceria com o professor Wilmar da Rocha D?Angelis, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que há mais de quatro décadas se dedica à pesquisa de povos indígenas e de seus idiomas. A equipe do projeto contou ainda com tradutores e revisores de Kaingang e Nheengatu.
"Estamos sendo pioneiros, dando um passo importante em direção a uma experiência móvel mais inclusiva. Nosso trabalho foi marcado pelo desejo de contribuir para a revitalização das línguas indígenas que, segundo a Unesco, estão correndo risco de extinção. Nossa meta foi viabilizar que falantes de Kaingang e Nheengatu pudessem usar a tecnologia como ferramenta de empoderamento da sua cultura?, diz Janine Oliveira, diretora executiva de Globalization Software da Motorola Mobility.
A chegada do kaingang e do nheengatu aos smartphones abre uma janela imensa para a preservação dessas línguas. Os jovens das comunidades onde elas estão vivas não são diferentes dos jovens de outros lugares do mundo: eles adoram tecnologia, e ter o idioma dos ancestrais à mão será um imenso estímulo para que não o deixem morrer.
Esforço nacional
Em âmbito nacional, a Fundação Nacional do Índio (Funai), por meio do Museu do Índio, também coordena um esforço nacional de registro e documentação para proteger, reforçar e revitalizar as línguas indígenas existentes no território brasileiro.
Desenvolvido desde 2009, o Programa de Documentação de Línguas Indígenas (Prodoclin) atua em conjunto com o Instituto Max Planck, da Alemanha, e várias universidades e centros de pesquisa do país, com o apoio da Fundação Banco do Brasil e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
O Prodoclin opera em aldeias de Norte a Sul do Brasil com a participação e intervenção direta dos indígenas e possibilita o registro de aspectos específicos dessas culturas. Todo o material produzido está consolidado em um acervo digital. Os produtos resultantes reúnem registros audiovisuais, acervos tratados e digitalizados, dicionários, gramáticas, materiais de divulgação como vídeos, CDs e DVDs, entre outros trabalhos produzidos durante os projetos.
Os conteúdos são validados e qualificados por mestres e especialistas de cada comunidade para uso em escolas e centros de documentação nas Terras Indígenas, além de serem disponibilizados no site oficial do projeto.
Extinção de línguas indígenas
Atualmente, existem 274 línguas indígenas no Brasil. Deste número, que sofre queda desde o início da colonização portuguesa ? haviam mais 1,2 mil antes do período pré-colonial ?, 190 correm risco iminente de desaparecer, segundo o Atlas das Línguas em Perigo, da Unesco. Segundo o estudo, o Brasil é o terceiro país com o maior número de línguas ameaçadas
"São vários os motivos para que isso ocorra: o contato com outras culturas, a idade avançada dos falantes e a falta de valorização dos povos indígenas influenciam para que as línguas acabem desaparecendo ao longo do processo histórico?, explica Myriam Tricate, coordenadora nacional do Programa de Escolas Associadas (PEA), braço da Unesco nas escolas de educação básica de todo o mundo.
A preservação de terras indígenas é crucial para entender o processo de desaparecimento das línguas nativas, pois, sem um território próprio, é quase impossível manter viva a cultura dessas comunidades.
O artigo 231 da constituição brasileira afirma que: "São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens?.
Contudo, existem projetos de lei que visam reduzir significativamente os territórios indígenas ou que permitem a exploração nesses locais, indo contra o que deveria ser prioridade para a preservação da cultura e das línguas indígenas.
A ameaça do governo Bolsonaro
Com dificuldade de avançar no Congresso Nacional em relação à regulamentação do garimpo, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o governo federal têm se aproximado de lideranças regionais e indígenas na região Norte do país para forjar um apoio popular à pauta. Essa estratégia montada para que o lobby da mineração avance no país foi revelada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
O caminho usado pelo governo inclui o apoio à flexibilização das legislações ambientais estaduais e a mudança dos zoneamentos ecológicos dos estados, como vem acontecendo em Rondônia, Roraima, Pará e Acre.
"O que está acontecendo agora: vários estados na Amazônia passam então a discutir a liberação do garimpo a partir de legislações estaduais, que é o caso de Roraima e é o caso também de Rondônia, que são dois governos que se elegeram usando os mesmos discursos do Governo Bolsonaro. Dois governos que são completamente aliados a Bolsonaro. São eles Marcos Rocha (PSL), em Rondônia, que é militar, e Antônio Denarium (sem partido), em Roraima?, explica Francisco Kelvim, coordenador nacional do MAB.
Apesar de a flexibilização da legislação ambiental ser uma promessa de campanha de Bolsonaro, Kelvim explica que até agora, em nível federal, deputados de oposição têm barrado as propostas dentro da Câmara dos Deputados.
De acordo com Kelvim, "o governo Bolsonaro não apenas tem incentivado a partir do discurso a flexibilização que tem acontecido por parte do governo federal e estadual, como também tem atuado ativamente na organização dos grupos que representam o interesse desse setor da mineração e do garimpo nas terras indígenas e nesses locais da Amazônia de forma institucional?.
O coordenador nacional do MAB narra que há uma série de medidas sendo colocadas em prática para que o lobby da mineração avance. "Você tem Ministério de Minas e Energia promovendo audiências sobre a liberação da mineração dentro dos estados da Amazônia; você tem o governo Bolsonaro atuando, inclusive recebendo [lideranças], atendendo a pautas da bancada da mineração no Congresso. Tem também a cooptação de lideranças de etnias e de grupos indígenas em torno dessa agenda?, elenca.
"Desde o primeiro ano do governo, ele recebeu no Palácio, e o próprio ministro Ricardo Salles também recebeu no Ministério, lideranças do Mato Grosso, de Roraima, do Amazonas, de vários estados da Amazônia. Essas ditas ?lideranças que defendem a exploração mineral das terras indígenas?.?, denuncia.
Avanço do garimpo ilegal
Um estudo divulgado pelo Instituto Socioambiental (ISA) constatou que de janeiro a dezembro de 2020 uma área equivalente a 500 campos de futebol foi devastada nas terras indígenas Yanomamis. O relatório, produzido pela Hutukara Associação Yanomami (HAY) e Associação Wanasseduume Ye?kwana (Seduume), concluiu que 500 hectares da floresta Amazônica já foram destruídos pelo garimpo ilegal ao longo do ano passado, somando um total de 2.400 hectares de terras destruídas pela exploração.
Intitulado ?Cicatrizes na Floresta ? Evolução do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami (TIY) em 2020?, o relatório afirma que mesmo com a pandemia, somente em 2020, o aumento da área Yanomami atingida foi de 30%. De acordo com as informações levantadas pelos coletivos, a atividade criminosa está cada vez mais próxima dos locais onde moram os indígenas. Para Dário Vitório Kopenawa, diretor da Hutukara Associação Yanomami, o cenário atual remonta a pior fase do garimpo na região.
A análise do desmatamento na região demonstra que o avanço do garimpo coincide com a implementação de políticas de afrouxamento da fiscalização nas terras protegidas e também, com falas de Jair Bolsonaro favoráveis à exploração. Segundo a doutoranda Marina Sousa, co-fundadora da rede Pró-Yanomami e Ye?kwana e coautora do estudo, o presidente fomentou o cenário ao defender que o garimpo pudesse ser legalizado.
Denúncia no Foro Permanente para Questões Indígenas
Na última quarta-feira (7), um documento preparado na ONU e que servirá de base para um debate em Nova Iorque sobre a situação dos povos indígenas no mundo denuncia Jair Bolsonaro por uma atitude negacionista diante do coronavírus e aponta seus atos como responsáveis por aumentar a pressão sobre a floresta. As informações são da Folha de S. Paulo.
"No Brasil, um dos epicentros mundiais da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro negou a existência do vírus e seus efeitos?, acusou o documento preparado à pedido da secretaria do Conselho Econômico e Social da ONU e como parte do Fórum Permanente para Questões Indígenas. O grupo é composto por 18 peritos, dos quais metade é escolhida pelos governos nacionais.
O levantamento sobre os direitos dos povos indígenas durante a pandemia foi coordenado por Dario José Mejia Montalvo, com a contribuição de especialistas e organizações indígenas. A referência ao presidente brasileiro ocorre em um capítulo intitulado "Aceleração do Extermínio como Forma de Genocídio".
O documento amplia a pressão sobre o governo brasileiro e exigirá que, durante o Foro Permanente para Questões Indígenas na ONU, o Itamaraty tenha de dar respostas.
O texto deixa claro como a política do governo Bolsonaro teve um impacto direto na situação dos povos indígenas. De acordo com o documento, "(Bolsonaro) designou ao seu gabinete uma maioria de militares e enviou as forças armadas sobre os territórios indígenas, ignorando as ordens do Supremo Tribunal Federal sobre a proteção devida?, disse. "Essas forças armadas resultaram ser, nos territórios, os principais transmissores do vírus?, ataca.
Em outro trecho do documento, os autores do estudo apontam como, em março de 2020, foi registrado um aumento de 3% no desmatamento do território Yanomani, no estado de Roraima. "Esse povo tem sido um dos mais afetados, registrando, em 4 de novembro de 2020, o falecimento de nove pessoas pelo vírus e o óbito de outras 14 pessoas, ainda que a causa da morte ainda siga sem ser esclarecida?, disse.
O Conselho Indigenista Missionário (CIMI), ligado à CNBB, espera que recomendações específicas em relação ao Brasil sejam feitas sobre a gravidade da situação da pandemia nos povos indígenas.
Peça-chave contra crise climática
De acordo com um relatório produzido em março deste ano pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês), povos indígenas são peça-chave na luta contra a crise climática do planeta e os melhores guardiões das florestas tropicais. O documento, que destaca a capacidade destes de reduzirem as taxas de desmatamento, de perda de biodiversidade e de evitar emissões de CO2, também faz um apelo pela sobrevivência dos povos originários.
Criada há mais de 75 anos para combater a fome e buscar a segurança alimentar no mundo, esta é a primeira vez que a FAO produz um documento dedicado ao papel dos indígenas com base em evidências científicas ? mais de 300 publicações foram consultadas.
"Está claro que a situação dos indígenas e populações tribais se tornou urgente?, justifica David Kaimowitz, especialista da agência da ONU e um dos autores.
A urgência surge diante da eclosão de políticas, econômicas, geográficas e culturais que colocam os territórios indígenas em xeque, agravadas pela pandemia da Covid-19. Esse cenário está diretamente ligado ao aumento da demanda por alimentos, energia, minérios e madeira, além de projetos de infraestrutura. A cobiça pelo controle dos recursos naturais coloca os povos e seus territórios sob pressão, e os impactos ambientais e sociais dessa ameaça que recai sobre esses cuidadores das florestas serão desastrosos, alerta o relatório.
"A pandemia nos fez mais conscientes dos perigos de não responder prontamente aos problemas. E esse é um momento importante, em que estamos vendo que é preciso enfrentar a crise climática e da biodiversidade. Os indígenas são parte da solução?, adiciona Kaimowitz.
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