Em meio a pandemia, Bolsonaro avança no desmonte da Ancine
por: Igor Tarcízio
O plano do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) de "desmontar? a Agência Nacional de Cinema (Ancine) avança enquanto os holofotes da mídia permanecem centrados na pandemia da Covid-19. De acordo com o jornal O Globo, a agência do audiovisual desocupou um andar inteiro de um prédio no Rio de Janeiro (RJ).
A expectativa é de que até o fim de abril, a Ancine perca o edifício e ocupe um único andar no prédio da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), em Brasília (DF).
O processo não surpreende, já que o ministro das Comunicações, Fábio Faria, declarou a intenção de fundir a Ancine e a Anatel, entidades de pastas e funções completamente distintas. Neste sentido, a mudança da entidade para o prédio da Anatel é uma declaração de intenções.
"Degolar? a Ancine
O presidente se mostra insatisfeito com a Ancine desde o começo de seu governo. Em agosto de 2019, ele ameaçou a transferência do órgão para Brasília, como parte de um plano para a Ancine "deixar de ser uma agência e passar a ser uma secretaria subordinada a nós?.
O objetivo, segundo o mandatário, era sujeitar a aprovação de projetos a seus "filtros? pessoais. "Se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine. Privatizaremos ou extinguiremos. Não pode é dinheiro público ficar usado para filme pornográfico?, afirmou.
Um mês depois desta declaração, Bolsonaro foi mais longe e ameaçou "degolar? os integrantes da Ancine: "Se a Ancine não tivesse, na sua cabeça toda, mandato, já tinha degolado todo mundo?. A ameaça foi completada por um gesto com as mãos sob o pescoço que representa o assassinato por meio de degola.
Crise sem fim
Desde a posse de Bolsonaro, a Ancine enfrenta uma crise sem precedentes, atuando com um presidente interino nunca efetivado e com uma diretoria incompleta, que não tem diretores nomeados.
Enquanto isso, a arrecadação das taxas de Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine) e Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel), pagas pela indústria de telefonia e audiovisual para o financiamento público de novas produções brasileiras de cinema e TV, acumula uma fortuna não contabilizada em cofres que têm sido blindados de investigação, sem que projetos novos ? ou muito poucos ?, sejam beneficiados com a verba do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA).
Apenas os valores arrecadados em 2018 (para serem investidos em 2019) foram divulgados (e somente em dezembro de 2019): um montante de R$ 703,7 milhões. Desde então, as taxas fecharam mais dois anos de arrecadação não revelada, podendo ter ultrapassado R$ 2 bilhões de dinheiro sem uso ? ou com mau uso.
O Ministério Público Federal (MPF) questionou, em ofício datado de 13 de outubro do ano passado, por que a Ancine tinha aprovado apenas um projeto para obter recursos do FSA num período de dez meses, pedindo que a agência tornasse públicos relatórios anuais de gestão do FSA.
"Apuramos que houve uma ordem da procuradoria da Ancine de que não fosse dado andamento a processos, a não ser aqueles que obtivessem liminar na Justiça. Houve, portanto, negligência ao correto andamento desses procedimentos, como houve ação deliberada de paralisação?, denunciou o procurador. Mas um juiz da 11ª Vara Federal do Rio de Janeiro barrou a investigação, aceitando a explicação de que "a culpa é da burocracia?.
Na ocasião, já havia ao menos 194 mandados de segurança impetrados contra a Ancine na Justiça Federal do Rio, em razão da demora na análise de projetos audiovisuais.
Desvio de função e "caça às bruxas?
Neste entremeio, o órgão mudou a atividade principal e deixou de ser uma instituição de fomento para virar um escritório de cobranças. Aproveitando de uma orientação do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre problemas de prestações de contas, a agência fez uma "caça às bruxas?. Reviu centenas de balanços anteriormente aprovados de produções com mais de 20 anos, como "Madame Satã?, de 2002, "Xuxa e o Tesouro da Cidade Perdida?, de 2004, e "Xuxa Gêmeas?, de 2006.
Por coincidência, depois de a apresentadora Xuxa Meneghel criticar o governo Bolsonaro e após o presidente dizer que iria rever aprovação de filmes de temática LGBTQ pela Ancine. "Confesso que não entendi por que gastar dinheiro público com um filme desses?, disse o presidente em agosto passado.
Enquanto escondia os valores de arrecadação do FSA, a Ancine também fez parceria com um banco para assumir ainda outra função, oferecendo empréstimos financeiros para produtores de cinema. Neste caso, a ideia original do FSA, de investimento à fundo perdido, seria substituída por um negócio que passaria a visar lucro ? para terceiros (banco) ou para a própria Ancine (em parceria com banco).
Perseguição política
Na última segunda-feira (5), deputados da Comissão de Cultura da Câmara classificaram como "perseguição política? a paralisação nas atividades da Ancine e a demora na liberação de recursos para produções já contempladas em editais da agência.
A audiência pública que debateu o audiovisual brasileiro foi tema do evento realizado a pedido de parlamentares socialistas, o deputado Tadeu Alencar (PSB-PE) e a deputada Lídice da Mata (PSB-BA). Em pauta, as ações realizadas pela Frente Parlamentar Mista em Defesa do Cinema e do Audiovisual Brasileiros em colaboração com entidades do setor do audiovisual.
Alencar, coordenador da Frente Parlamentar em defesa do Audiovisual, também considerou as limitações impostas ao setor uma "atitude de perseguição?.
"Os motivos para não liberação de recursos de projetos já contratados são falsos e também não há contratação de novos, o que mostra a negligência e a atitude relapsa com o setor?, declarou.
A deputada Lídice da Mata acredita que o governo identifica o cinema e o audiovisual como "inimigos ideológicos?. A socialista defendeu durante audiência que seja elaborada moção em protesto à ausência do presidente da Ancine, que se recusa a participar dos debates sobre a situação do cinema nacional.
Agravamento
O deputado Paulo Teixeira (PT-SP) sugeriu uma reunião com dirigentes da Ancine e o TCU para resolver a situação. "Não aceitamos esse estrangulamento. O atual governo entende o audiovisual brasileiro como uma conspiração globalista, marxista, mas o audiovisual é plural?, afirmou.
Durante a audiência, representantes do setor relataram o quadro de crise agravado pela pandemia. O presidente da Brasil Audiovisual Independente (BRAVI), Mauro Garcia, fez um apelo para que o Congresso atue para a retomada do setor.
"Vivemos o descumprimento da ordem legal e um momento de insegurança jurídica no setor, com a paralisação do Conselho Superior de Cinema, do Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual e da Ancine. Todas as funções, de fomento, regulação e fiscalização, estão sendo descumpridas?, afirmou.
Representante da Associação das Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro (API), Cíntia Domit Bittar pediu pressão para que haja a reconstituição da Ancine, com nomeação de novos dirigentes e sabatinas pelo Senado. "A provisoriedade dos mandatos dos atuais dirigentes tem sido usada como justificativa para essa paralisia?, afirmou.
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