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#ElasQueLutam: a independência intelectual de duas brasileiras

por: Iara Vidal 


série especial #ElasQueLutam, produzida pelo site Socialismo Criativo, resgata a história da participação feminina de brasileiras e outras referências mundiais nas revoluções anticapitalistas, de resistência ao fascismo e ao nazismo deflagradas ao longo do século 20.

Em comemoração ao Dia Internacional das Mulheres, celebrado no dia 8 de março, esta edição resgata a história de duas intelectuais brasileiras revolucionárias que ajudaram a criar alternativas conceituais ao eurocentrismo. Nesta edição, duas gigantes e pouco conhecidas pensadoras brasileiras: Lélia Gonzalez e Vânia Bambirra.

Foto: Reprodução de acervo pessoal

Intelectual, ativista e política, Lélia Gonzalez foi uma das pioneiras nas discussões sobre a relação entre gênero, classe e raça no mundo. Ela representou o Brasil em debates em vários países sobre as condições de exploração e opressão dos negros e das mulheres. A partir de sua experiência em eventos nos Estados Unidos, na África e na América Latina, criou um marco conceitual para a compreensão da identidade brasileira e latino-americana: a amefricanidade.

Mineira de Belo Horizonte, filha de pais pobres ? um operário negro e uma empregada doméstica descendente de indígenas ?, teve a oportunidade de estudar. Ela se graduou em história e geografia pela Universidade do Estado da Guanabara, hoje Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Depois, cursou filosofia na mesma instituição.

As reflexões sobre a questão racial foram intensificadas na época do casamento com o espanhol Luiz Carlos Gonzalez, colega de faculdade, em 1964. A família do rapaz branco não aceitava a relação. Essa situação foi o estopim que liberou em Lélia os questionamentos relacionados ao processo de internalização de um discurso ?democrático racial?. 

A vida da então professora mudou com a morte do marido, por suicídio, um ano depois. Foi quando ela, já com 30 anos, mergulhou em duas áreas nas quais buscou cura e autoconhecimento e que acabaram virando referência em seu trabalho: a psicanálise e o candomblé. A vivência na religião de matriz africana foi preponderante na formação de sua visão política.

Já uma intelectual respeitada, na década de 1970, iniciou a militância no movimento negro. Naquela época, jovens negros passaram a observar certos acontecimentos de caráter internacional, como a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos e as guerras de libertação dos povos negro-africanos de língua portuguesa. Esse cenário reavivou a articulação silenciada pelo golpe militar de 1964. 

O trabalho na difusão da cultura afro-brasileira desenvolvido por Lélia e outros companheiros e companheiras culminou na criação do Movimento Negro Unificado (MNU), que ela ajudou a criar e a consolidar. O grupo foi lançado em 1978, em um ato que marcou a volta dos protestos de rua por justiça racial no país em plena ditadura. 

Ela também foi fundadora do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras do Rio de Janeiro (IPCN-RJ) e do Nzinga Coletivo de Mulheres Negras do Olodum (Salvador). 

"A gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora.?
Lélia Gonzalez

Gonzalez influenciou na conscientização e mobilização da participação feminina de mulheres negras, pois viu que, assim como no movimento feminista, havia a manutenção da ideologia racista, o movimento negro tampouco escapava da mentalidade machista, o que apontava para a necessidade de um espaço próprio de discussão.

Lélia participou da formação do PT, foi filiada ao PDT, atuou nas discussões sobre a Constituição de 1988 e participou da primeira composição do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), de 1985 a 1989. Por onde passou, deixou uma produção intelectual intensa e original, que mistura saberes e vivências de diversas áreas e marcou uma geração de militantes negras.

Ao propor uma nova visão do feminismo, que considera o caráter multirracial e pluricultural da América Latina, em contraposição à visão eurocêntrica, Lélia discutiu, ainda nas décadas de 70 e 80, o que hoje se aproxima dos conceitos de feminismo interseccional (que incorpora as desigualdades de raça e classe) e decolonial (que questiona a ordem econômica e de pensamento de grupos dominadores).

Filha de um alfaiate comunista, ainda criança aprendeu que ou a vida era construída em comunhão, coletivamente, ou não poderia ser boa. Ela usou o conhecimento para apontar caminhos de partilha e tentar desvendar os terrores do capitalismo sob promessas de bem-viver.  

Mineira de nascimento, ela se fez do mundo. Socióloga, cientista política e economista brasileira, graduou-se em 1962 pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre pela Universidade de Brasília (UnB) e doutora em Economia pela Universidade Nacional Autônoma do México (Unam), começou a carreira acadêmica como docente no Departamento de Sociologia da UnB, em 1963.

Militante, com o golpe de 1964, interrompeu suas atividades na universidade brasiliense. Após passar dois anos clandestinamente em São Paulo, Bambirra e o companheiro, Theotônio dos Santos, se exilaram no Chile. Pouco tempo depois, foi convidada para atuar como docente no Centro de Estudios Socioeconómicos (CESO) da Universidade do Chile.

No CESO , Vânia desenvolveu, junto com os colegas do chamado "Grupo de Brasília?, a Teoria da Dependência, que consiste em uma leitura crítica do subdesenvolvimento na América Latina, uma das periferias do capitalismo mundial. A visão latinoamericana era uma contraposição às posições eurocêntricas dos partidos comunistas e à visão estabelecida pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL).

A Teoria da Dependência, que Bambirra ajudou a elaborar, desenvolveu uma nova leitura da realidade latino-americana. Era um instrumental analítico da realidade que influenciou o programa da Unidade Popular, partido do socialista Salvador Allende, presidente eleito em 1970. 

Três anos depois, deu-se o golpe militar no Chile e o assassinato de Allende. Vânia partiu para novo exílio, dessa vez no México, onde lecionou na Universidade Nacional Autônoma do México.

Toda sua trajetória intelectual e acadêmica está vinculada a produções que aliaram reflexão teórica com militância política. Tinha a capacidade de fazer teoria de um jeito que qualquer trabalhador podia entender. Conseguiu capturar com competência os grandes temas do momento histórico que se vivia na América Latina. 

Vânia nunca se contentou em apenas escrever e manteve atuação política concreta. Participou da fundação da Organização Revolucionária Marxista ? Política Operária (Polop) e depois, quando finalmente voltou ao Brasil, vinculou-se ao PDT, liderado por Leonel Brizola.

Tornou-se mais conhecida na América hispânica do que no Brasil. Talvez pelo longo período de exílio, escreveu a maior parte de seus livros em espanhol. Foram necessários 40 anos para que "O Capitalismo Dependente Latino-Americano? ganhasse sua primeira publicação nacional, em janeiro de 2013. 

Em um nota sobre a obra, Bambirra deixou claro que o trabalho representa parte do esforço coletivo em superar o pensamento desenvolvimentista. Além da orientação de atuar em etapas dos Partidos Comunistas para a revolução nos países latino-americanos, ela buscou estabelecer as bases de uma teoria marxista da dependência. 

"A utopia dos projetos de desenvolvimento capitalista nacional autônomo só é conservada pela pequena-burguesia, na medida em que esta não consegue compreender dois tipos de dificuldade: primeiro, aquelas derivadas da divisão internacional do trabalho e, depois, aquelas que provêm da atual resistência do movimento popular frente à sua manipulação pela liderança burguesa?.
Vânia Bambirra, em "O capitalismo dependente latino-americano? (Editora Insular, 2013, p. 150)

Palestra de Vânia Bambirra sobre "O papel do Brasil na integração latino-americana? no XXXIX Encontro Nacional de Estudantes de Economia (Eneco) e II Congresso de Estudantes Latino-Americanos de Economia (Celec), realizado de 04 a 10 de agosto de 2013, em Florianópolis (SC),  pelo Centro Acadêmico Livre de Economia (Cale).

Com informações de Raphael Lana SeabraIELA e El País  



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