?Não sairemos melhores da pandemia?, diz Frei Betto
por: Igor Tarcízio
O frade dominicano e doutor em Filosofia pela Universidade de Havana, Frei Betto trata, em entrevista, de sua falta de otimismo e do prazer da escrita. E também divide uma certeza: a pandemia não tem nada a ver com Deus.
"Sempre digo: "Guardemos o pessimismo para dias melhores?, mas creio que não sairemos melhores da pandemia.
Com o lançamento de seu novo livro "Diário de quarentena ? 90 dias em fragmentos evocativos", escrito, como o título cita, durante o período de isolamento social causado pelo o coronavírus, Frei reflete sobre a atual realidade e faz paralelos de quando também esteve isolado, em uma cadeira durante a ditadura militar.
Deus, Gaia e a Covid-19
A pandemia não é, de jeito nenhum, um castigo de Deus. É o resultado dessa era que muitos qualificam de "antropocena? marcada pela intervenção do humano na natureza. Eu a considero "capitolocena? em que o capital privado tem prioridade sobre os direitos coletivos, o que leva a uma brutal desigualdade social e devastação da natureza. A Covid-19 é uma resposta a esse desequilíbrio da natureza. Os predadores se desconfiguraram, e a consequência chegou a nós.
A natureza viveu bilhões de anos sem nossa incômoda presença. Já nós não podemos viver sem ela. Desde a alimentação à matéria prima, tudo vem da natureza. E ela pode prosseguir mais bilhões de anos sem nossa incômoda presença. Perdemos essa consciência. A Covid-19 não tem a ver com Deus, mas com Gaia: é a natureza reagindo ao que temos produzido nela.
Confinamento
Passei a quarentena no Convento dos Dominicanos, em São Paulo, e no sítio de um amigo. O fato de eu ser frade e morar num convento, que é uma semi clausura, além da experiência de prisão, faz com que eu me dê muito bem com a solidão. Poder estai- isolado, não ter culpa de não estar fazendo as coisas lá fora, isso é gratificante para mim. Lido muito bem com a reclusão. Não tenho ansiedade. Lamento não ter conseguido fazer alguns trabalhos, mas, por outro lado, não me sinto numa estação esperando o trem que não sei quando vai passar. Estou sim na estação, mas trabalhando muito ali. Não importa quando o trem vai chegar.
Pessimismo
Não sou um otimista. Sempre digo: "Guardemos o pessimismo para dias melhores?, mas creio que não sairemos melhores da pandemia. Digo isso por causa dos sinais de xenofobia, do Trump apreendendo equipamentos que outros países, inclusive o Brasil, importava. Estamos vivendo um ciclo forte de discriminação, xenofobia, e não sou muito otimista com o futuro imediato.
Um novo tempo
Essa situação só vai melhorar mesmo quando nós tomarmos consciência de que precisamos mudar esse mundo. Existe uma máquina ideológica para que a gente dê a liberdade em troca da segurança.
Tem, no livro, um mini-conto de um personagem chamado Nemo que traduz bem o que eu quero dizer. Somos livres para escolher várias marcas de produtos, mas não outro modelo de sociedade. Cada vez mais essa hegemonia do capital e do autoritarismo quer nos infligir medo do diferente, do negro, do homossexual. Medo da possibilidade distinta da sociedade, de fantasmas que já não existem, como o comunismo. E vamos abrindo mão da liberdade e virando "1984? de George Orwell.
Mas, por outro lado, tenho esperança de que um dia a humanidade vá mudar. Nem o Império Romano foi eterno. Tudo muda. Nós, que estamos vivos neste momento da humanidade, não veremos isso. Até ser preso, acreditava que veria um Brasil de justiça, de reforma agrária. Perdi essa ilusão. Mas faço questão de morrer semente. Alguém do futuro vai colher se nós nos empenharmos pela mudança.
Papa Francisco
O Papa Francisco defendeu a união civil de casais homoafetivos (a Santa Sé, no entanto, afirmou, após a entrevista, que as declarações dadas por Francisco a um documentário foram tiradas de contexto). Ele já tinha admitido isso desde quando era cardeal em Buenos Aires. Mas falta dar o passo adiante: admitir que a Igreja possa abençoá-los sacramentalmente. Onde há amor aí está Deus.
Também foi importante a nomeação do arcebispo de Washington (EUA), Wilton Gregory, o primeiro cardeal americano que é negro. Isso sem dúvida incomoda Trump e os supremacistas brancos. E o mais importante será o cardeal atuar sintonizado com a postura progressista do Papa Francisco.
Escrita na quarentena
Nos anos em que fiquei preso, entre 1969 e 1973, escrevi cartas para parentes e amigos. Queria dar notícias minhas, pois as pessoas estavam preocupadas, e fazia denúncias, que chegaram clandestinamente do lado de fora. Passei por oito presídios, inclusive essa unidade de Presidente Venceslau, em SP, de onde esse cara do tráfico (André do Rap, um dos chefes do PCC) foi solto. Escrevi as cartas sem intenção de virarem livro, mas foram levadas para a Itália, traduzidas e publicadas lá. O psicanalista Hélio Pellegrino (1924-1988), meu amigo, me disse que o que me salvou da loucura foram as cartas. Eu não tinha a consciência do valor terapêutico da escrita.
Com informações do jornal O Globo
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