Case Happee - economia criativa, solidária e justiça social na Índia
Quando nenhum emprego faz sentido para você, é hora de mudar. E, às vezes, é preciso ir até o outro lado do mundo para encontrar o que procura. Foi dessa busca que nasceu a Happee, uma confecção sediada na Índia e que prioriza seu papel social, doando dois dólares a cada venda para uma instituição de crianças com HIV daquele país. Inspirando-se na frase "seja a mudança que você quer ver no mundo", de Mahatma Gandhi, a brasileira Letícia Sales, de 29 anos, e o indiano Peeyush Rastogi, de 24, se uniram para criar uma marca que, além das doações, remunera de forma justa todas as partes da cadeia produtiva.
Paranaense, Letícia veio para São Paulo estudar Moda na Faculdade Santa Marcelina. Depois, fez uma pós-graduação em Comércio Internacional e, já formada, trabalhou no marketing da Gloria Coelho, Adriana Degreas e de algumas grandes marcas de moda no Brasil. Mas ela não se identificava com o ambiente corporativo e sentia não ter um salário compatível com sua dedicação. Foi quando conheceu a AIESEC, organização que conecta jovens interessados em mudanças sociais e empresas em todo o mundo.
"Eu estava tão saturada do mundo da moda que iria para onde me contratassem", conta ela, que conversou com o Draft por Skype, direto de Jaipur. Acabou conseguindo dois estágios pelo mundo: na Itália e na Índia. Em Milão, a AIESEC local organizou um concurso para estudantes de moda chamado EcoFashion Lab e alguns estagiários trabalharam na organização do concurso, e outros em empresas associadas à instituição de fomento ao empreendedorismo que era parceira da AIESEC. Letícia trabalhou numa marca pequena, cujo dono era palestino. Os cerca de 50 dias dessa experiência foram suficientes para ela se desiludir um pouco mais com o mercado para o qual havia estudado e no qual sonhava trabalhar:
"Vi um cinto Armani ser produzido na minha frente por um imigrante chinês. Um cinto que seria vendido a preços exorbitantes por ser Made in Italy"
Ainda em 2013, na segunda fase do programa, quando chegou à Índia, Letícia faria outro estágio, agora de oito meses, e no qual a mesma história se repetiria. Ela estagiou numa empresa com 400 funcionários que terceiriza a produção de marcas como Marisa, Mango, Pernambucanas e M.Officer. Mais uma vez, ela viu como a cadeia produtiva da moda é injusta. A experiência bastou para que tivesse a certeza de que não iria trabalhar para nenhuma organização, a não ser que fosse algo em que ela realmente acreditasse.
O presidente da AIESEC local era o engenheiro Peeyush Rastogi, que também não se identificava com sua profissão e compartilhava com Letícia o sonho de um trabalho com propósito social. Em Jaipur, que fica a 250km da capital Nova Déli, os dois se aproximaram e, em novembro de 2014, começaram a traçar o que seria a Happee.
QUANDO É PRECISO MUDAR DE PAÍS PARA SE REALIZAR
Com os planos de empreender na Índia, Letícia teria de ficar bem mais tempo do que o previsto no país. Segundo ela, a adaptação cultural ali já tinha sido muito difícil, mas isso lhe deu a autoconfiança necessária para, aproveitando as novas habilidades, finalmente abrir uma empresa. "Eu sempre quis empreender, mas antes não tinha coragem. Se não fosse ali, naquele momento, não ia ser nunca mais", conta.
Para abrir a empresa, eles investiram o equivalente a 25 mil reais, uma soma das poupanças pessoais e de um empréstimo da mãe de Letícia. A Happee, então, nasceu como uma marca de sapatos, acessórios e produtos de decoração indianos, elaborados por uma rede de artesãos com relações justas de trabalho. "Os primeiros meses da empresa foram de muita pesquisa e planejamento, e nos certificamos de que tudo era ético e dentro da legalidade", afirma Peeyush.
O nome, além de ser uma alusão aos nomes dos fundadores, explicita sua principal missão: ser uma empresa que não se preocupa só com o lucro, mas que ajuda a construir um mundo melhor. E faz isso na prática: além de só trabalhar com artesãos locais, destina 2 dólares do valor de cada venda para a ONG Rays Aasha Ki Ek Kiran, que assiste crianças com HIV no interior da do país e tem uma gestão transparente. Desde o início de sua operação, a marca já destinou o equivalente a 500 dólares para lá quantia que, segundo Letícia, em moeda local é suficiente para bancar a educação de três crianças durante um ano.
Desde a primeira coleção, lançada em julho de 2015, Peeyush e Letícia procuram pessoalmente artesãos locais e fazem a negociação direto com eles, sem intermediários, o que garante que sejam devidamente remunerados. Ela conta:
"O que a Índia faz de melhor é o trabalho à mão. Tudo de arte aqui é muito bom e isso é um diferencial do nosso produto"
A criadora da Happee fala da empresa como se fosse de um filho, e menciona a mistura de cores, bordados e o material utilizado como seus atributos mais fortes: "São coisas muito diferentes do que encontramos no Brasil".
É MAIS CARO SER JUSTO
Na Happee, uma bolsa custa cerca de 50 dólares e os lenços ficam entre 20 e 40 dólares. Segundo os sócios, eles não querem se definir pelo preço, mas os valores acabam sendo mais altos do que a média local, e isso tem sido um desafio para prosperarem vendendo na Índia. "Aqui há uma mentalidade diferente na relação qualidade e preço. Eles nem sempre entendem que um produto de qualidade é mais caro", diz Letícia. Além disso, na Índia há uma oferta maior de itens como os oferecidos pela Happee, o que não acontece no resto do mundo.
Logo, o principal foco deles se tornou o mercado externo. Só o Brasil representa 70% das vendas da marca. Além das compras pelo site, Letícia fechou parceria com dois lojistas (um na capital e outro no litoral paulista) para revender os produtos diretamente, o que deve fazer essa proporção aumentar ainda mais. Com um ano de operação, ela começa a refletir sobre o futuro e as escolhas que fez:
"Passo três meses do ano no Brasil, mas quero aumentar para seis. Já estou há um tempo longe do país, tenho saudade, e há muito potencial para expandir aí"
No resto do mundo, a Happee ganha espaço aos poucos, graças à participação em feiras de negócios sociais e das redes pessoais que Letícia e Peeyush conheceram pela AIESEC. "Ainda somos pequenos, mas conseguimos bastante coisa em apenas um ano", diz ele. O plano é tornar a Happee uma empresa global, com lojas em diversos países, mas sem perder a missão de transformar as realidades locais e proporcionar remuneração decente aos artistas e artesãos que participam da produção. O plano é que, com o crescimento da empresa, também aumente o número de instituições atendidas (dentro e fora da Índia).
Tanto Letícia como Peeyush tentam fazer com que o consumidor da Happee saiba o quanto esse trabalho é definidor, e que também incorpore o espírito da marca.
Um jeito de fazer isso foi personalizar as embalagens, que têm agradecimentos escritos à mão e até desenhos feitos pelas crianças da ONG.
Letícia diz o que a fez tomar essa decisão: "Achamos importante que a pessoa sinta que sua compra está ajudando alguém e contribuindo para um mundo melhor".
Os efeitos, ela diz, são uma maior satisfação do cliente, uma ligação mais forte deles com a marca e também um "up" na divulgação.
ERROS DE CÁLCULO, PRECONCEITO E INEXPERIÊNCIA: NADA É FÁCIL
Olhando assim, pode parecer que foi fácil empreender na Happee, mas nem Letícia e nem Peeyush sabiam o que iam encontrar pela frente. E tiveram dificuldades, por exemplo, para fazer balanço, contratos, descobrir a melhor logística para enviar os produtos para outro continente, entre outros desafios. Eles foram se adaptando conforme a necessidade, cada sócio contribuindo com o que trazia de experiências anteriores. "Eu trabalhei com marketing e o Peeyush tinha uma boa noção organizacional, sabia gerir pessoas. Mas, ainda assim, essa é nossa primeira empresa e cada dia ainda é um aprendizado muito grande", conta ela.
Os erros, é claro, foram inevitáveis. Um deles, o excesso de confiança. O jeito otimista dos dois fez com que, de cara, eles errassem feio na quantidade de produtos que pediram aos fornecedores. Um exemplo são os sapatos: até hoje não se esgotaram o primeiro lote que encomendaram. Ficou o aprendizado para revisar as metas de venda.
Fora isso, eles enfrentam outro problema com os fornecedores: eles simplesmente descumpriam os prazos. Isso fez com que a primeira coleção fosse lançada um mês depois do previsto. Letícia e Peeyush avaliam que isso é um traço cultural do indiano. Os sócios contam que é muito difícil achar alguém que entregue a tempo. Peeyush conta:
"Ainda estamos aprendendo a negociar. Depois de mais um problema, percebemos que estávamos acreditando em promessas impossíveis"
Por sua vez, Letícia enfrenta, ainda, outra barreira cultural: na negociação, quando percebem que há uma estrangeira na empresa, os fornecedores tendem a cobrar muito mais pelos itens. E também não gostam muito de ver uma mulher discutindo com eles. Por isso, Peeyush acaba atuando mais nessa parte. "Nosso trabalho se complementa", diz. O desafio, para os dois, é aprender a lidar com esses percalços sem perder a motivação, mesmo nas situações mais estressantes.
Eles comemoram um ano de operação vendendo cerca de 40 itens por mês e ambos sentem que a Happee vem cumprindo seu objetivo. Nas palavras de Peeyush: "É claro que tenho incertezas, pois ainda estou construindo minha empresa enquanto meus amigos estão recebendo o salário deles. Mas penso no que realmente importa na vida e acho que, se for para fazer algo, tem que trazer algum retorno para a sociedade. Não importa qual. Letícia complementa: "Com a Happee, tive a certeza que era isso que eu queria fazer da minha vida. Às vezes as pessoas dizem que eu tive muita coragem, mas não acho. Coragem, para mim, é passar a vida inteira fazendo algo que não te faz feliz".
Fonte: Projeto Draft
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