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Proteção da democracia, tarefa que unifica a luta contra o retrocesso

Imagem Humberto Pradera/Divulgação PSB

por Carlos Siqueira* em 06/06/2019

O Brasil enfrenta uma conjuntura política desafiadora, cuja natureza aguda precisa ser avaliada com serenidade, para que se possam vislumbrar cenários para a ação política. Para fins diagnósticos, deve-se observar inicialmente que o país tem alternado ciclos autoritários, e de predomínio da democracia ao longo de sua história republicana, sendo o atual o mais longevo, com seus trinta e quatro anos a contar de 1985.

A situação dramática com que o Brasil se depara não decorre, evidentemente, apenas do atual mandato presidencial, mas também de uma sucessão de eventos ao longo dos últimos trinta e quatro anos, que produziram uma vitória eleitoral em 2018,que traduz um desencanto com relação às virtudes da democracia representativa – fenômeno que se observa também em escala mundial.

Qual é o fator chave para entender a crise aguda pela qual passa o Brasil? Não há margem a dúvidas nesse caso. O principal fator a explicar o cenário atual está relacionado a uma CRISE POLÍTICA, cujo desenho mais preciso começou a se configurar em 2013. É evidente que o país já tinha problemas severos em seu sistema político antes dessa data, mas não se pode negar que este foi um marco claro, no qual a população expressou sua inconformidade com a situação existente, e que só fez agravar desde então.

Do que se tratava desde lá? Inicialmente de um grande desarranjo no sistema político e de suas instituições partidárias, cuja multiplicação jamais correspondeu às inclinações político-ideológicas efetivamente existentes no seio da população. Um mínimo de conhecimento de nossa evolução política recente permite indicar que com essa configuração se multiplicam as legendas de aluguel, que têm incidido negativamente sobre o processo político como um todo.

A fragmentação partidária trouxe problemas correlatos, sendo que provavelmente o mais prejudicial está associado às complexas relações entre o executivo e o parlamento, que geraram práticas pouco republicanas, e adquiriram escalas tão expressivas, a ponto de contribuírem de forma decisiva para a degradação da percepção da população, sobre o sistema político como um todo.

Colocado frente a frente com a insatisfação popular, contudo, o sistema político acabou por adotar medidas defensivas, em lugar de atender aos clamores por mudanças expressivas em sua lógica de funcionamento. Desse modo, implantou-se uma reforma política extremamente tímida, que não atacava de modo incisivo o problema da fragmentação partidária, como que foram preservadas todas as tensões preexistentes.

Faltou desprendimento para implantar, por exemplo, cláusula de barreira de ao menos 5%, mesmo que a adequação fosse feita em um conjunto de duas eleições. Não se atentou devidamente para o fato de que, em universo de mais de trinta partidos, é difícil haver de fato alguma diferenciação política. Para o cidadão, portanto, sobram em geral "etiquetas”, sem que ele possa reconhecer no que objetivamente elas diferem.

A fragmentação partidária e a quase ausência de clareza político-ideológica contribuíram, ainda, para que se produzisse no Brasil um presidencialismo extremamente forte, mas que se vê obrigado a se relacionar com o Congresso Nacional muito mais na base dos "interesses”, em lugar de fazê-lo a partir de definições programáticas e convicções ideológicas.

O agravamento da crise política se deu por sinal através dessa via, da qual emergiram os mensalões, as cassações, as desqualificações de instituições como a Presidência da República e de seus mandatários, as práticas pouco republicanas de financiamento eleitoral etc.

A população desejava a mudança de paradigma e não uma reforma pontual e pouco abrangente do sistema político. A recusa reiterada do sistema político em se atualizar, agindo em conformidade com o clamor popular provocou um efeito extremamente grave: o descrédito da própria democracia representativa, pois o voto do eleitor pouco valia, no sentido de promover as mudanças almejadas na cultura política.

Foi justamente essa frustração com o sistema político e suas instituições partidárias que nos trouxe ao cenário atual, ou seja, a uma "renovação” radical de executivos e legislativos em todo o país. Tratou-se, contudo, de uma renovação de um modo geral para pior, e com regras que permaneceram praticamente inalteradas, reapresentando-se consequentemente os problemas e vícios decorrentes da fragmentação partidária – se é que eles não se tornaram ainda mais sérios.

Apresentado o quadro, o que se deve fazer? Inicialmente diminuir a quantidade de partidos, até que cheguemos a cinco ou seis instituições, com diferenciais políticos, programáticos e ideológicos facilmente reconhecíveis pela população. Um segundo ponto a considerar é a insuficiência da democracia participativa, que requer a intensificação do uso dos mecanismos de participação, já previstos na constituição – plebiscito, referendo, projetos de lei de iniciativa popular etc.

Por outro lado, a contumácia das crises geradas a partir das relações entre executivo e legislativo autoriza pensar, também, em uma mudança de sistema político, uma vez que o parlamentarismo sabidamente tem melhores condições para enfrentar as intempéries, sem que elas produzam abalos institucionais, ou conflagrem a sociedade civil em torno de posições políticas irreconciliáveis. É preciso considerar, igualmente, a adoção do voto distrital misto, porque ele também contribui para o fortalecimento do sistema político-partidário.

Evidentemente, um melhor ordenamento do sistema político nacional é importante por si mesmo, mas é fundamental considerar os impactos de sua atual configuração sobre a economia, uma vez que foi justamente o desarranjo político, iniciado de forma mais aguda em 2013, que nos trouxe à crise atual.

Comecemos pelo básico: sem estabilidade política os investimentos são duramente penalizados e, com eles, o emprego, renda assalariada, quadro fiscal etc. É a situação em que nos encontramos, na qual há tal desalento de empresas e famílias, que já beiramos a recessão.

O cenário ruim é piorado pelas políticas econômicas, com destaque para a obsessão de cortar as despesas do governo, sejam elas de custeio ou investimento. O resultado final tem sido desastroso, uma vez que exerce um efeito contracionista sobre a economia, o que faz piorar o quadro fiscal, em lugar de melhorá-lo.

Não é apenas a conjuntura que se vê atropelada pelo fiscalismo governista. Os cortes nas políticas sociais, especialmente previdência, assistência social e saúde (que compõem o Sistema Seguridade); segurança pública, educação, saneamento básico etc.,contribuem de forma decisiva para uma piora da qualidade de vida da população.

Afastam-se também, com a receita ultraliberal, os investimentos em ciência e tecnologia, educação, infraestrutura e logística, construção civil, o que compromete as possibilidades de desenvolvimento do país, impactando negativamente a produtividade e competitividade. Não é necessário ser um especialista para compreender que sem a vitalidade criativa propiciada por estas políticas públicas, a indústria e os serviços de grande complexidade murcham, como já se tem visto fartamente nos últimos anos.

É importante destacar que os constrangimentos fiscais do país ocorrem apesar de temos uma carga tributária de aproximadamente 34% do PIB, patamar que é comparável com várias economias desenvolvidas[1]. A superação da crise fiscal, no que se refere aos volumes financeiros, encontra-se essencialmente do lado das despesas, portanto, seja em termos de sua qualidade, seja quanto às destinações de recursos.

Destaque-se, pelo lado das despesas, que a questão essencial consiste em conter o avanço do serviço da dívida pública sobre os recursos orçamentários, que há décadas asfixia as finanças públicas e, consequentemente, o desempenho econômico e social do país.

Obviamente essa indicação não afasta a necessidade imperiosa de um reforma, para promover justiça fiscal – especialmente no que tange à progressividade da carga tributária, visto que no Brasil quem paga impostos são fundamentalmente os mais pobres.

Sobre as despesas merece menção específica, dado a reforma proposta pelo governo, a questão previdenciária e seu suposto déficit, cuja apuração desconsidera a evidência de que a Desvinculação de Receitas da União (DRU) tomou dessa política pública aproximadamente R$ 1,4 trilhão ao longo de treze anos (cálculos do ex-ministro da Previdência Social, Jair Soares[2]).

A rigor, o que o ultraliberalismo governista não consegue aceitar é que, entre a insustentabilidade fiscal e essa monomania de cortar as despesas estatais, deve haver um termo, que não conduza o país à depressão, algo que já vai se afigurando no cenário atual.

Apresentadas as dimensões da crise, em seus elementos políticos e econômicos, o que é mais curioso é o fato de que a população não consiga discernir de forma clara que a responsabilidade maior, sobre os fatores que recaem negativamente sobre sua qualidade de vida, caiba aos segmentos políticos e econômicos, que militaram diuturnamente contra a transformação da Constituição de 1988 em realidade. Saliente-se, no entanto, que não se trata de um "erro de avaliação” em sentido estrito.

A população se apercebe de que a vida mudou neste ciclo democrático, de um modo geral para melhor, mas parece ser mais sensível ao fato de que o Estado nacional foi apropriado por grupos de interesse, que tomaram para fins privados, o grosso dos recursos que deveriam ser utilizados para assegurar serviços públicos de qualidade, melhoria de renda etc. – algo que ocorre, como já se indicou acima, em grande medida da organização perversa do sistema político-partidário.

Desse modo, ocorre no Brasil um grande dissenso entre a sociedade civil — especialmente da base para os extratos médios de renda — e o Estado Nacional, cuja personificação recai sobre os agentes políticos, agências estatais, membros da alta magistratura, empresas públicas de qualquer natureza, servidores, entidades que mantenham suas atividades com base em recursos públicos, como os sindicatos, partidos políticos etc.Essas são as faces, o rosto comum do "tudo isso que está aí”, que concedeu ao atual governo, já a partir do processo eleitoral, seu verniz "antissistema”.

Derivam daqui, contudo, duas grandes lacunas do ponto de vista narrativo. Primeiramente, os principais beneficiários da captura do Estado Nacional nunca aparecem de forma efetiva, ou seja, a população associa a precariedade dos serviços públicos a ela prestados aos "marajás”, funcionários públicos, políticos, estatais etc., mas muito raramente realiza a sinapse que leva do esgotamento orçamentário do estado brasileiro, a elementos como o serviço da dívida pública, renúncias fiscais, leniência em cobrar os grandes devedores do fisco, e assim por diante.

Dissimula-se, igualmente, que sem a adequada mediação política e a governança praticada pelas agências estatais, o que emerge é um governo de natureza aristocrática, cujo poder e hierarquia são estabelecidos pela força bruta do dinheiro e dos interesses do sistema financeiro, que se articula com as grandes corporações transnacionais e nacionais, com rentistas etc. Não é exatamente esse o desenho que o governo Bolsonaro vem tentando implantar desde sua posse?

O que é possível fazer neste cenário? Inicialmente reconhecer que estamos diante de uma luta de longo prazo, ou seja, a que se relaciona a recuperarmos a confiança a sociedade brasileira em um projeto político efetivamente democrático, criativo, inclusivo, sustentável etc. Para que isso seja viável é condição essencial PRESERVAR A QUALQUER PREÇO A DEMOCRACIA, objetivamente ameaçada por um projeto político cuja essência é o autoritarismo.

Não nos enganemos quanto a isso: a agenda econômica que tem sido apresentada ao Brasil pelo atual governo, para ser implantada em sua completude, exige soluções autoritárias. Exatamente por isso, a luta que melhor unifica a resistência em benefício do grosso da população – setores populares, classe média urbana, pequeno empresariado, empreendedores individuais etc. – é a da preservação e aprimoramento da democracia e a manutenção dos direitos sociais duramente conquistados a partir de 1988.

Significa dizer que cabe aos partidos progressistas nesse momento, como principal tarefa, somar forças e esforços, priorizar o Brasil e o futuro de nosso povo, deixando a questão eleitoral, para o momento em que ela for de fato relevante.

Do ponto de vista prático, o que importa fazer é construir uma aliança ampla, com todas as forças políticas, institucionais; personalidades do mundo intelectual, artístico, operadores do direito etc. É preciso, também, ter a grandeza para atuar com firmeza em prol dos interesses estratégicos do Brasil, que em uma listagem não exaustiva deve abranger ao menos:

Desenvolver todas as ações necessárias a inserir o Brasil no contexto da economia criativa, que já se transformou nas economias desenvolvidas no principal elemento de geração de valor.
Ampliar os investimentos em todos os setores que qualifiquem a economia nacional, no sentido de aumentar o valor agregado de nossos produtos e gerar empregos qualificados, em lugar da precarização que vem sendo promovida nos últimos anos.
Investir pesadamente em educação, ciência, tecnologia e inovação, como elemento essencial ao desenvolvimento em geral e ao desenho de uma verdadeira política industrial, que amplie a produtividade e competitividade da indústria nacional.
Defender a soberania da região amazônica, com base no Programa Ocupação Inteligente da Amazônia, fundamentado essencialmente na articulação de iniciativas das políticas públicas de ciência, tecnologia e inovação, tendo por metas principais promover a sustentabilidade econômica regional e inclusão social.
Militar por um sistema tributário progressivo, que elimine a injustiça fiscal atualmente existente no Brasil.
O processo de resistência a esse governo, antipopular, de claras pretensões autoritárias, que executa uma agenda econômica e social regressivas, pode ser uma excelente via para desconstruir na prática o discurso falacioso, segundo o qual poderia haver uma trajetória virtuosa, na ausência de democracia, ou de instituições político-partidárias.Esse mesmo esforço de resistência nos permitiria, ainda, consolidar uma agenda virtuosa para o Brasil, a partir de uma perspectiva verdadeiramente progressista, de desenvolvimento político, econômico e social.

Enquanto instituição partidária, a maior contribuição que o PSB pode dar ao aprimoramento do sistema político é promover sua autorreforma, que deve conservar seus valores programáticos fundamentais, desenvolvendo-os para fazer face aos desafios próprios ao mundo contemporâneo.

Tal esforço de reorganização deve ser correspondido por uma potencialização da comunicação interna e externa, valendo-se em ambos os casos das imensas possibilidades oferecidas pela comunicação digital, de que são exemplos privilegiados as redes sociais. Na área de comunicação digital, portanto, designei o ex-senador João Alberto Capiberibe para coordenar um Grupo de Trabalho que já se encontra em plena atividade.

Esses dois movimentos, por sua vez,precisam ser articulados à ampliação das relações internacionais com partidos progressistas da Europa e o Partido Democrata dos Estados Unidos, consolidando-se, ainda, a proximidade com as instituições latino-americanas, cujo relevo pode ser retratado pela recondução do PSB à secretaria da Coordenadora Socialista Latino-americana, liderada em nosso primeiro mandato pelo ex-deputado Beto Albuquerque, sucedido recentemente pelo deputado federal Alessandro Molon,que designei como secretário encarregado das relações internacionais do partido.

Esse conjunto de tarefas é essencial à qualidade das relações que manteremos com a população brasileira que, como demonstramos acima, exige dos partidos políticos movimentos resolutos, no sentido de aprimorar a escuta ativa de suas demandas, além de abrir espaços significativos para a participação política.

*Carlos Siqueira Presidente nacional do PSB



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